Sistema de esgotamento e mudanças climáticas: cenário brasileiro favorece soluções sustentáveis
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Autor: Tiago Borges
Recentemente, a intensificação das mudanças climáticas tem reforçado a urgência de se repensar as emissões dos conhecidos GEE em diversos setores, nos quais se inclui o setor de saneamento. Segundo a última publicação das estimativas anuais de emissões de GEE no Brasil1, o saneamento era responsável por 4,2% das emissões em 2020, com participação majoritária do subsetor “Disposição de resíduos sólidos” com 60,9% dessas emissões.
Ainda com base nessa publicação, o subsetor “Tratamento e despejo de águas residuárias domésticas”, no qual se inclui o esgoto sanitário, contribuía percentualmente com cerca de 1,3% das emissões nacionais de GEE, mensuradas, principalmente, pela emissão de metano (CH4) e óxido de nitrogênio (N2O). Esses gases, CH4 e N2O, apresentam distintos potenciais para o efeito estufa, respectivamente, com 28 e 265 vezes o efeito equivalente do dióxido de carbono (CO2), o qual é tido como composto referência (CO2equivalente).2
Isso posto, a seguir se analisa o sistema de esgotamento sanitário sob a ótica das emissões de GEE, discorrendo rapidamente sobre as unidades responsáveis pela coleta e transporte, nas quais há menor potencial de geração e emissão, e abordando, de forma detalhada, as unidades de tratamento e diferentes fluxogramas consolidados na realidade brasileira.
Coleta e transporte
A rede coletora de esgotos é uma potencial fonte emissora de GEE, principalmente naquelas que possuem grandes extensões de tubulação e elevado número de estações elevatórias, cujo trajeto até a estação de tratamento resulta em longas permanência do esgoto. Condições de anaerobiose (ausência de oxigênio) podem resultar na geração de CH4, assim como de gases odorantes, a partir da degradação da matéria orgânica presente no esgoto doméstico lançado na rede coletora. Dessa forma, condições construtivas e operacionais adequadas devem ser atendidas para que se evite a deposição de sólidos orgânicos e a consequente formação e emissão desses compostos para a atmosfera, como, por exemplo, a manutenção da tensão trativa mínima descrita na NBR 9649/1986 e a redução do tempo de permanência do esgoto em estações elevatórias.
A coleta e afastamento do esgoto sanitário já proporciona o distanciamento das pessoas de seus dejetos, no entanto, o seu lançamento “in natura” em corpos de água pode resultar em duas vertentes de impacto ambiental relacionadas aos GEE, promovidas pela matéria orgânica e pelos nutrientes. A matéria orgânica demandará oxigênio para a sua estabilização, resultando na redução do oxigênio disponível para os organismos aquáticos, podendo, em caso mais intensos, resultar em mortandade de peixes. Os nutrientes, por outro lado, em condições específicas de corpo de água, podem resultar em eutrofização, no qual há o desenvolvimento excessivo das plantas e microalgas, afetando negativamente toda a dinâmica aquática. Ambas as vertentes podem resultar em condições de anaerobiose pela consequente redução da concentração de oxigênio dissolvido e acréscimo da matéria orgânica disponível, advinda dos organismos mortos, a qual será estabilizada por vias anaeróbias, emitindo CH4 e gases odorantes de forma não controlada para a atmosfera. Nesse sentido, o tratamento de esgoto antes do seu lançamento nos cursos d’água é essencial para a garantia da qualidade da água dos cursos d’água e dos seus usos previstos.
Tratamento de esgoto
Diferentemente, na estação de tratamento de esgotos (ETE) haverá a exposição do esgoto a condições favoráveis à geração de GEE, porém, sob condições controladas.
Em estações baseadas em sistemas anaeróbios, como em ETEs que possuem tratamento biológico em reator de fluxo ascendente e manta de lodo (UASB, do termo em inglês), a geração de CH4 é uma condição intrínseca do processo anaeróbio. O CH4, componente majoritário do biogás produzido nesses reatores, apresenta elevado poder calorífico e ampla possibilidade de aproveitamento energético, dentre as quais se pode citar o seu uso como combustível para processos térmicos na própria ETE ou para a população circunvizinha à unidade, por exemplo, na higienização de lodo e na cocção de alimentos (em substituição ao GLP – gás liquefeito de petróleo) ou aquecimento de água, respectivamente. Ademais, pode ser utilizado para geração de energia elétrica ou biometano, tanto para autoconsumo na ETE como para injeção em suas respectivas redes de distribuição. Em relação ao balanço das emissões de GEE, como o reator UASB não apresenta consumo energético e o aproveitamento do biogás pode substituir combustíveis de origem fóssil, como o gás natural ou GLP, sua pegada de carbono pode ser, inclusive, negativa.
No entanto, sabe-se que parte do CH4 produzido pelo reator anaeróbio não é transferido para a fase gasosa (~30%)3, permanecendo dissolvido em seu efluente líquido. Essa parcela, se não for gerenciada de forma adequada, pode de fato contribuir para emissões de GEE, pois a sua dessorção (transferência da fase líquida para a gasosa – atmosfera) pode ocorrer em condições de turbulência do líquido ou queda hidráulica. Porém, a introdução de uma simples câmara de dessorção após o reator UASB pode promover a sua efetiva transferência para uma corrente gasosa controlada (> 85%)4, possibilitando o seu posterior tratamento em processos simples e de baixo custo, como a biofiltração.
Ainda sob a ótica das emissões diretas, cabe ressaltar que tecnologias de tratamento aeróbio, como os tradicionais lodos ativados, não produzem CH4 no tratamento dos esgotos (fase líquida). Por outro lado, apesar de menor quantidade, há possibilidade de se emitir N2O, especialmente em regiões de temperatura mais elevada e em sistemas com monitoramento e controle de pH e oxigênio dissolvido incipientes5; gás cujo potencial no efeito estufa é cerca de 9,5 vezes maior que o CH4, como mencionado anteriormente.
Relativo ao consumo energético, tem-se demandas superiores para processos aeróbios em comparação aos anaeróbios, o que contribui, indiretamente, para emissões unitárias de GEE também superiores pelas emissões inerentes aos processos de geração da energia elétrica. Bressani-Ribeiro e Chernicharo (2023)6 estimaram a emissão de 250 gCO2eq/kgDQOremovida para sistemas de lodos ativados convencionais, levando em consideração a realidade brasileira de matriz energética renovável (125 gCO2eq/kWh). Por outro lado, esses mesmos autores reportaram a emissão de 140 gCO2eq/kgDQOremovida para o reator UASB, atribuída unicamente à parcela não recuperada do metano dissolvido em seu efluente, pois o reator UASB não demanda energia elétrica em sua operação. Cumpre ressaltar que essa diferença entre emissões unitárias de GEE pode ser ainda mais ampla em países com matriz energética baseada em fontes fósseis e/ou para lodos aeróbios com digestão aeróbia do lodo excedente (p.ex.: lodos ativados com aeração prolongada).
Adicionalmente, processos aeróbios produzem entre 3 e 5 vezes mais lodo que processos anaeróbios, pelo favorecimento da síntese celular, o qual geralmente demanda adensamento e posterior estabilização. O processo de estabilização normalmente é realizado por meio de digestão anaeróbia, produzindo, inerentemente, CH4 e demandando gerenciamento de certa forma similar ao descrito para o reator UASB.
Uma vez estabilizado, o lodo deve ser destinado de forma ambientalmente adequada, havendo a possibilidade de se produzir biossólido para condicionamento de solo de forma economicamente viável, no entanto, a disposição final em aterros sanitários ainda é aceita e constitui a principal rota de destinação no Brasil. Esta disposição pode resultar em emissões de GEE, pois mesmo que haja sistema de captação e aproveitamento (ou queima) do biogás gerado no aterro sanitário, a eficiência desse processo pode ser da ordem de 70%, havendo emissões fugitivas7. Ademais, o transporte do lodo entre a ETE e o aterro sanitário representa emissões de GEE, por ser tipicamente realizado por caminhões movidos a diesel. Essa emissão vinculada ao transporte do lodo é fator importante se observada a realidade nacional, na qual cerca de 51% dos municípios não possuem destinação ambientalmente adequada, sendo necessário o seu transporte a municípios vizinhos para a disposição final em aterros sanitários (ABRELPE, 2022). Assim sendo, a geração de maior quantitativo de lodo excedente pode implicar em maior emissão de GEE na realidade brasileira.
GEE na concepção de ETE no cenário nacional
A necessidade de se descarbonizar o setor de esgotamento sanitário, reduzindo a emissão de GEE, é mais um aspecto que deve ser levado em consideração no momento da escolha da rota tecnológica de tratamento, assim como o ambiental, o econômico e o social.
Com a finalidade de se conceber unidades adaptadas à realidade nacional, para além das condições favoráveis de clima, cabe ressaltar a predominância (~70%) de municípios com populações inferiores a 20.000 habitantes8, realidade que, de forma geral, não demanda sistemas compactos, favorecendo fluxogramas compostos por sistemas extensivos, com soluções baseados na natureza (SbN) e baixas geração de lodo e demanda energética, características que, se consideradas de forma adequada, contribuem para neutralidade em relação à pegada de carbono da ETE.
Em não havendo área disponível para a implantação de sistemas integralmente extensivos, um exemplo de fluxograma alinhado à realidade brasileira e a fatores ambientais, econômicos, sociais e de neutralidade da emissão de carbono, poderia ser o tratamento biológico realizado por reator UASB seguido de diferentes pós-tratamentos extensivos, como lagoas de polimento.
Na primeira unidade dessa configuração, tem-se a geração de biogás com elevada concentração de CH4, o qual apresenta elevado poder calorífico e pode, após tratamento simplificado, beneficiar a comunidade do entorno da ETE na cocção de alimentos em cozinhas comunitárias, escolas, o que evitaria o consumo de combustíveis provenientes de fontes fósseis (GLP). Na lagoa de polimento, haveria o tratamento complementar que, apesar de ser aeróbio, não apresenta consumo energético, assim como o reator UASB. A principal rota de remoção de nitrogênio é a volatilização da amônia, promovida pelo elevado pH e consequente deslocamento da sua forma química ao volátil NH3. Esse mecanismo evita o desenvolvimento da nitrificação, que oxidaria a amônia a nitrito e posteriormente a nitrato, reduzindo o risco de emissões de N2O. Adicionalmente, a lagoa de polimento proporciona a remoção de fósforo pela sedimentação de compostos fosfatados em ambientes de elevado pH, assim como de microrganismos patogênicos de maiores dimensões, como ovos de helmintos. Ademais, proporciona, tipicamente, a remoção de vírus entéricos e 99,99% de espécie indicadora de bactérias patogênicas – Escherichia coli9.
Cabe mencionar que a configuração exemplificada apresenta aspectos limitantes, sendo o principal a necessidade de extensas áreas para a sua instalação. No entanto, com base na realidade nacional supra descrita, a existência de áreas e seus custos não representam fatores limitantes para pequenos municípios, favorecidos, adicionalmente, pela demanda por unidades de pequeno porte devido às pequenas vazões a serem tratadas.
Dessa forma, a reflexão sobre a consideração das emissões de GEE no tratamento de esgotos do Brasil tangencia aspectos extremamente importantes e que, possivelmente, não poderão ser meramente reproduzidos com base em cenários observados em países desenvolvidos. O clima e a disponibilidade de áreas favoráveis a tecnologias tropicalizadas, a realidade econômica da população e a carência de acesso à mão de obra especializada são fatores que devem ser considerados. Por fim, ressalta-se novamente a contribuição que reatores anaeróbios podem proporcionar na redução da demanda energética e na geração de lodo, assim como a produção de biogás, atualmente de aproveitamento energético efetivamente factível para diversos portes, possibilitando, inclusive, a neutralidade da emissão de carbono da unidade de tratamento, em algumas configurações.
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Referências:
1Brasil. Estimativas anuais de emissões de gases de efeito estufa no Brasil. 6ª ed. Brasília: MCTI, 2022. 137p. Disponível em: <https://www.gov.br/mcti/pt-br/acompanhe-o-mcti/sirene/publicacoes/estimativas-anuais-de-emissoes-gee/arquivos/6a-ed-estimativas-anuais.pdf>. Acesso em: 20 dez. 2023.ABRELPE. Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil. Grappa Marketing Editorial, São Paulo, SP, Brasil. 2022.
2IPCC. AR5 – CHapter 08: Anthropogenic and Natural Radioative Forcing. 2014. Disponível em: <https://www.ipcc.ch/site/assets/uploads/2018/02/WG1AR5_Chapter08_FINAL.pdf>.
3Souza C. L., Chernicharo C.A.L., Aquino S. F. (2011). Quantification of dissolved methane in UASB reactors treating domestic wastewater under different operating conditions. Water Science and Technology, v.64, n.11, p.2259–2264. 2011.
4Brandt, E.M.F.; Noyola, A.; McAdam, E. Control of diffuse emissions in UASB reactors treating sewage. In: Chenicharo, C.A.L, Bressani-Ribeiro, T. (eds.). Anaerobic Reactors for Sewage Treatment: Design, Construction, and Operation. IWA Publishing. 2019.
5Brotto, A.C. Fatores de controle das emissões de óxido nitroso (N2O) em tanque de aeração de estação de tratamento de esgoto. 73f. Dissertação (mestrado em Geociências da Universidade Federal Fluminense). Niterói – RJ. 2011.
6Bressani-Ribeiro, T.; Chernicharo C.A.L. Carbon footprint of UASB reactors treating sewage: is it being properly interpreted? XIV Latin American Workshop and Symposium on anaerobic digestion. Juriquilla: IWA; UNAM. 2023.
7Candiani, G.; Viana, E. Emissões fugitivas de metano em aterros sanitários. Geousp – Espaço e Tempo (Online) v.21, n.3, p.845-857. 2017.
8IBGE. Censo demográfico. 2023. Disponível em: <https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/22827-censo-demografico-2022.html?edicao=35938>. Acesso em: 21 dez 2023.
9von Sperling, M. Princípios do tratamento de biológico de águas residuárias. Vol. 4. Lagoas de estabilização. 2a ed. rev ed. Belo Horizonte: DESA-UFMG, 2002. 196 p.