Por que o sistema de esgotamento sanitário emite maus odores?

05/01/2024, 15:43:08, última atualizacao 05/01/2024

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Autor: Tiago Borges

De forma inicial, vale a pena pontuarmos os componentes do esgoto doméstico, dentre os quais pode-se destacar os dejetos humanos – fezes e urina, assim como compostos utilizados para a higiene pessoal, limpeza em geral, como shampoos e sabões, e água. Partindo dessa composição, pode-se verificar que haverá uma ampla diversidade de substâncias no esgoto, como compostos nitrogenados provenientes dos processos metabólicos dos aminoácidos, fosfatados advindos dos produtos de limpeza, sulfurosos oriundos da água tratada, além de uma infinidade de outros compostos condicionados à origem do esgoto sanitário, o qual pode incluir, ainda, efluentes não domésticos lançados na rede coletora.  

Uma vez lançados na rede coletora, primeira estrutura do sistema coletivo de esgotamento sanitário, esses compostos já estarão em transformação, havendo a hidrólise de alguns deles, liberação e oxirredução de outros, por intermédio de microrganismos ou não.  

A partir da rede coletora, já teremos a formação de alguns dos compostos odorantes mais conhecidos, como a amônia (NH3) e aminas, proveniente da ureia e do nitrogênio orgânico presente nas fezes e urina, sulfeto de hidrogênio (H2S) e outras substâncias voláteis sulfurosas, por exemplo, mercaptanas, produzidos a partir dos compostos de enxofre presentes no esgoto, além de outras substâncias orgânicas, como ácidos, aldeídos, cetonas, álcoois e fenóis. A sua formação e transferência da fase líquida para a gasosa são condicionadas a fatores como a natureza aeróbia ou anaeróbia do meio, ao seu pH, à turbulência do fluxo e à presença de microrganismos. Assim sendo, o sistema de coleta e afastamento do esgoto, apesar de ser uma das primeiras partes do sistema de esgotamento sanitário, pode ser uma unidade emissora de gases odorantes, demandando condições construtivas e operacionais adequadas para que isso seja evitado. Dentre essas condições, pode-se destacar a consideração da tensão trativa crítica recomendada na NBR 9649/86 para que haja a autolimpeza e a redução da formação de biofilme na superfície da tubulação. 

Seguindo o fluxo do esgoto sanitário no sistema, chega-se à estação de tratamento de esgoto (ETE), na qual alguns aspectos intensificam a formação e potencial emissão dos compostos odorantes. A sua localização ao final da rede coletora é um dos fatores que contribui para a potencial emissão de compostos odoríferos já no início da unidade, pois o trajeto percorrido entre o lançamento do esgoto na rede coletora e a sua chegada na ETE possibilita a formação desses compostos. Alguns sistemas de esgotamento sanitário são compostos por vários quilômetros de rede, além de estações elevatórias, o que resulta em tempo de residência consideravelmente elevado até o esgoto chegar na cabeceira da ETE e, consequentemente, maior possibilidade de transformação dos compostos presentes. Outro fator que pode contribuir para a formação e emissão desses compostos são os processos e operações unitárias aos quais o esgoto sanitário é submetido, podendo haver ambientes microbiológicos e condições físicas do fluxo que favoreçam esses processos.  

Figura 1
Tratamente Preliminar. Fonte: https://cbhvelhas.org.br/noticias/subcomites-arrudas-e-caete-sabara-visitam-ete-arrudas-e-conhecem-processo-de-tratamento/

As unidades subsequentes podem ter diferentes configurações, dentre elas se pode destacar o fluxograma típico de ETE aeróbia, com tratamento primário, constituído de decantador, seguido de tratamento secundário aeróbio, geralmente alguma das variações de lodos ativados, e sistema de tratamento do lodo excedente, com adensadores e digestores. Outra possível configuração é a utilização de reatores de manta de lodo (UASB, do inglês Upflow Anaerobic Sludge Blanket) seguido de unidade de pós-tratamento do efluente anaeróbio, como o filtro biológico percolador (FBP). A título de exemplo, abordaremos a segunda configuração por ser amplamente adotada no Brasil, ter fluxograma simplificado, demanda energética e geração de lodo menores, assim como por ter seu tratamento principal anaeróbio, o que gera uma quantidade maior de compostos odorantes, principalmente o H2S (cheiro de ovo podre), e pode resultar em uma importante fonte de emissão de gases odorantes, caso os critérios construtivos e operacionais adequados não sejam atendidos. 

O reator UASB, de forma geral, é constituído de três compartimentos: digestão, decantação e câmara de biogás, sendo que o componente estrutural que permite essa configuração é o separador trifásico, no qual, como o próprio nome já diz, há a separação das fases líquida, sólida e gasosa. Por se tratar de um processo anaeróbio, os compostos oxidados de enxofre são reduzidos a H2S, o qual é transferido à fase gasosa (biogás) em pequenas concentrações, se comparado ao metano (CH4), promovidas, principalmente pela turbulência do fluxo de efluente e biogás gerado a partir da matéria orgânica presente no esgoto. Sabendo da importância do separador trifásico para o sucesso da operação do reator UASB, incluindo a adequada captação e direcionamento do biogás gerado, a equipe do CR ETES participou do desenvolvimento de um modelo pré-fabricado (Étsus 1000) em material resistente aos compostos presentes no gás, modular, de baixo peso e composto de sistemas de inspeção que impossibilita a perda de biogás para atmosfera evitando emissões fugitivas. Uma vez coletado, o biogás deve ser encaminhado para tratamento e aproveitamento energético, caso haja viabilidade econômico-financeira, ou queimado em queimadores adequados, evitando a emissão de CH4 e H2S para a atmosfera, o que, além de maus odores, representaria o lançamento de um dos principais gases de efeito estufa, o CH4 

Figura4 6bApós a saída do reator UASB, o efluente anaeróbio apresenta alguns desses compostos odorantes dissolvidos, principalmente o H2S. A sua condução por canais abertos em regime hidráulico turbulento ou, ainda, a imposição de quedas hidráulicas pode resultar no desprendimento desses compostos. Esse trecho do percurso do esgoto no interior da ETE é o mais crítico, com potencial para se tornar o principal emissor de maus odores. Para evitar essa emissão para a atmosfera, recomenda-se a dessorção desses compostos em ambiente controlado, como a câmara de dessorção desenvolvida na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e posterior tratamento do gás (Souza et al., 2021). Esse tratamento pode ser feito por métodos simplificados, como a biofiltração.       

Caso não haja a dessorção dos gases dissolvidos no efluente do reator UASB, as unidades aplicadas ao pós-tratamento do efluente, como é o caso do FBP, podem se tornar fontes emissoras de maus odores. A distribuição do efluente no FBP favorece a transferência dos gases para a fase gasosa, atmosfera, pois necessariamente haverá a queda hidráulica do efluente sobre o meio suporte do FBP. Por isso, cabe reforçar a importância do gerenciamento adequado dos gases dissolvidos no efluente do reator UASB. Com predominância de processos aeróbios, o FBP proporcionará a oxidação dos compostos odorantes reduzidos presentes no efluente, dentre os quais pode-se destacar o H2S e a NH3, produzindo efluente final com menor potencial na emissão de maus odores. Por outro lado, haverá a geração de lodo aeróbio, o qual geralmente necessita ser estabilizado antes do seu desague, para se evitar possíveis emissões gasosas odorantes.  

A estabilização do lodo aeróbio pode ser realizada no próprio reator UASB, simplificando o fluxograma da ETE. O lodo misto, anaeróbio e aeróbio, adensado e digerido no reator UASB possui entre 3 e 5% de sólidos totais, e elevada estabilidade pelo longo tempo de retenção de sólidos (> 30 dias), características que proporcionam o seu desague em leitos de secagem sem emissões consideráveis de odores. 

Além das questões construtivas e operacionais mitigadoras da geração de maus odores, a ETE deve utilizar medidas que evitem o contato da população do entorno com possíveis odores emitidos. Dentre essas ações, pode-se destacar: i) alocação da unidade em região afastadas, na medida do possível, do núcleo populacional mais adensado; ii) manutenção de área livre entre as unidades da ETE e seus limites; iii) consideração das condições atmosféricas, principalmente relativa à movimentação das massas de ar, optando por localizações favoráveis. Adicionalmente, deve-se incluir em seu projeto paisagístico a utilização de vegetação que forme uma barreira quebra-ventos, como as conhecidas cortinas de árvores, no entorno da estação com a finalidade de se evitar a dispersão dos gases nas camadas mais baixas da atmosfera. 

Por fim, cabe ressaltar a possível emissão de maus odores em todas as unidades do sistema de esgotamento sanitário, com destaque para a unidade que se encontra na porção final desse sistema, a ETE. Esse potencial é maximizado em sistemas anaeróbios, por favorecerem a geração de compostos reduzidos, como o sulfeto de hidrogênio. Portanto, é de suma importância a adoção de medidas construtivas e operacionais adequadas para se evitar a formação e emissão desses compostos em unidades que não possuem medidas de controle, além do seu adequado gerenciamento e controle nas unidades intrinsecamente geradoras. Ademais, fica evidente a necessidade de se considerar potenciais emissões gasosas nas fases de concepção e projeto da ETE, utilizando medidas mitigadoras ambientais, como a sua implantação em local favorável em relação ao fluxo das massas de ar e a adoção de barreiras vegetais quebra-vento. 

Você enfrenta problemas com gases odorantes ou quer saber mais sobre eles e suas medidas de controle? Entre em contato conosco. 

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Referências:

1Souza et al. Coletânea de Notas Técnicas 1: Valoração e gerenciamento de subprodutos gasosos do tratamento do esgotoParte B: Avanços nas técnicas de controle de emissões gasosas em ETEs com reatores anaeróbios. Nota Técnica 2 – Câmaras de dessorção para remoção de sulfeto de hidrogênio e metano dissolvidos em efluentes de reatores anaeróbios. Cadernos Técnicos Engenharia Sanitária e Ambiental. v.1, n.2, p.23-33, 2021. Disponível em: https://abes-dn.org.br/pdf/ESA_NT_V1n2-DOI_compressed.pdf.