Lodo de esgoto: resíduo ou subproduto? Problema ou oportunidade?
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Autores: Lucas Chamhum e Lívia Lobato
O tratamento de esgoto sanitário gera subprodutos sólidos, os quais precisam ser adequadamente gerenciados a fim de garantir a eficiência global do sistema, bem como para não comprometer o meio ambiente e a saúde da população. Dentre estes subprodutos, destacam-se:
- O lodo primário gerado nas unidades de tratamento primário, o qual é composto pelos sólidos sedimentáveis do esgoto bruto.
- O lodo secundário (ou biológico ou excedente) gerado nas unidades de tratamento biológico, que consiste na própria biomassa (síntese de células microbianas) que cresce às custas do alimento fornecido pelo esgoto afluente.
Caso o lodo biológico gerado não seja removido, ele tende a se acumular no sistema, podendo eventualmente sair com o efluente final, deteriorando sua qualidade em termos de sólidos em suspensão e matéria orgânica. A frequência de remoção pode variar conforme o tipo de sistema e rotina operacional. Por exemplo, as lagoas de estabilização conseguem armazenar o lodo por longos períodos; os reatores anaeróbios demandam descartes periódicos; já os lodos ativados requerem uma retirada contínua ou bastante frequente.
O que fazer com o lodo descartado?
Assim, após o descarte do lodo, é necessário o seu gerenciamento, o qual, na perspectiva da economia linear visa principalmente reduzir a umidade do lodo e, consequentemente, seu volume, acarretando a redução dos custos com manuseio, transporte e disposição final.
O gerenciamento do lodo engloba as seguintes de etapas: adensamento (redução de volume); estabilização (degradação de matéria orgânica, quando necessário); condicionamento (preparação para o desaguamento, quando este é mecanizado); desaguamento (remoção de umidade e redução de volume); e destinação final.
Mas será que são só essas etapas mesmo, principalmente se considerarmos a perspectiva da economia circular?
Nessa perspectiva, tem-se a possibilidade de beneficiamento desse subproduto para uso no solo em atividades agrossilvipastoris ou para recuperação de áreas degradadas. Assim, o propósito vai além e aborda etapas que buscam a estabilização do material e a inativação de patógenos, a partir da etapa de higienização, resultando na geração de um produto seguro do ponto de vista ambiental e de saúde pública, e adequado para o aproveitamento em solos.
A incorporação de cada etapa no fluxograma do gerenciamento de lodo depende do sistema de tratamento utilizado para a fase líquida, da qualidade do lodo e do uso e destinação final pretendidos para este subproduto.
Apesar da baixa quantidade gerada (em torno de 1 a 2% do volume de efluente tratado), o gerenciamento do lodo pode alcançar de 20 a 60% dos custos operacionais totais de uma ETE1.
Quais as formas de destinação final do lodo?
A destinação final adequada do lodo representa um dos gargalos do setor de saneamento no Brasil, sendo comumente disposto de forma irregular em lixões, aterros controlados, cursos d’água e outros. O descarte inadequado desse subproduto pode causar impactos ao meio ambiente, como águas superficiais e subterrâneas, solo, e à saúde pública. Uma forma de disposição ainda considerada ambientalmente adequada no Brasil é o aterro sanitário, porém tal técnica está cada vez mais em desuso em países desenvolvidos e em desenvolvimento, uma vez que impossibilita a recuperação de importantes recursos disponíveis nesse subproduto – como nutrientes e matéria orgânica.
O lodo, por ser uma importante fonte de matéria orgânica e possuidor de grande quantidade de macro e micronutrientes para as plantas, alternativamente à destinação final em aterros sanitários, pode ser transformado em biossólido2 para uso agrícola ou recuperação de áreas degradadas.
Para possibilitar esses usos, o lodo deve ser submetido a processos de beneficiamento ou tratamento, sendo transformado em biossólido, material adequado para aplicação em solos. Para tanto, são necessárias etapas de estabilização e higienização, com o objetivo de eliminar ou reduzir a atração de vetores e a concentração de organismos patogênicos. Existem diversos métodos de higienização capazes de atender aos requisitos legais, cada um com suas particularidades. A seleção do método mais adequado pode depender de fatores como o tipo e quantidade de lodo e de biossólido a ser produzido, a forma de uso e aplicação, disponibilidade matéria-prima para os processos, características ambientais e climáticas da região, demanda do consumidor final, custos de implantação e operação, dentre outros.
A etapa de higienização do lodo ainda é pouco utilizada nas ETEs brasileiras, uma vez que, na grande maioria dos casos, o lodo não é transformado em biossólido para possibilitar a sua aplicação no solo. Contudo, a inserção dessa etapa no fluxograma de gerenciamento do lodo, visando o seu uso benéfico em solos pode possibilitar ganhos econômicos (p. ex.: redução dos custos com transporte e disposição final do lodo, venda do biossólido), ambientais (p. ex.: redução de emissão de gases de efeito estufa) e sociais (p. ex.: incentivo a pequenos produtores rurais), constituindo-se em um dos principais pilares do tratamento sustentável de esgoto.
Em síntese, sob a ótica do fechamento de ciclos e da economia circular, a aplicação do lodo de esgoto em solos, por proporcionar, ao mesmo tempo, a reciclagem de nutrientes essenciais às plantas e a melhoria das propriedades físicas, químicas e biológicas do solo, deve ser considerado entre as formas de destinação final que pode trazer os maiores benefícios à sociedade.
Adicionalmente, como o beneficiamento e a aplicação do biossólido em solos nem sempre é possível, existem alternativas para destinação final do lodo a serem exploradas, a exemplo da aplicação da tecnologia de secagem térmica para redução de volume e de produção de sólido com elevado potencial energético.
E o arcabouço legal para uso de biossólido em solos?
A Resolução do Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA) no 498, de 19 de agosto de 2020, define critérios e procedimentos para a produção e aplicação de biossólido em solos, para uso agrícola ou recuperação de áreas degradadas. Na resolução são estabelecidos os padrões de qualidade do biossólido em termos microbiológicos (classe A e B) e de substâncias químicas (classe I e II), bem como as condições para uso de cada tipo de biossólido. Ademais, são abordados os requisitos para os projetos agronômicos, o monitoramento do solo, a forma de destinação (contínua ou em lotes), dentre outros.
Apesar do respaldo legal para aproveitamento do biossólido em solos, da viabilidade técnica para higienização do lodo e dos reconhecidos benefícios desta forma de disposição (ciclagem de nutrientes e matéria orgânica, aumento da produtividade das plantas, melhoria dos aspectos físicos e químicos do solo, dentre outros), esta prática ainda é pouco utilizada no território nacional. Os estados do Paraná e São Paulo e o Distrito Federal despontam como referência no uso de biossólido, embora parte do lodo gerado continue sendo disposto em aterros sanitários.
Esta tímida experiência quanto ao aproveitamento do biossólido contrasta com o fato de o Brasil ser um dos países com maior produção agrossilvipastoril no mundo e dependente da importação de fertilizantes. Nesse sentido, emerge a dúvida sobre quais os entraves e dificuldades para efetivamente difundir o uso do biossólido no cenário nacional. Em que se pesem eventuais entraves de ordem social (como a aceitação pública e dos próprios produtores rurais) e técnica (desenvolvimento de projetos otimizados, disponibilidade de laboratório de análise qualitativa do biossólido, mão de obra qualificada etc.), parece haver incertezas sobre a viabilidade econômica, as quais merecem ser apresentadas e discutidas, em especial no contexto de ETEs de pequeno e médio porte (em geral, as mais negligenciadas em termos de gestão e operação). Estas dúvidas, se não adequadamente tratadas, geram um ambiente de insegurança quanto à viabilidade de geração e aproveitamento do biossólido, concorrendo para manutenção da disposição final de um subproduto com valor agregado em aterros sanitários, aterros controlados, lixões ou outras rotas inadequadas.3
Para saber mais sobre métodos de higienização e uso benefício de lodo de esgoto em solos, bem como sobre a legislação nacional, acesse a Coletânea de Notas Técnicas “Valoração e gerenciamento de subprodutos sólidos do tratamento do esgoto” em nossa biblioteca.
Convidamos também para conversar com nossos especialistas sobre como implementar o aproveitamento do lodo gerado na sua ETE.
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Notas:
1Andreoli, C. V.; von Sperling, M.; Fernandes, F. Lodo de esgotos: tratamento e disposição final. 2ª ed. Belo Horizonte: Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental. Universidade Federal de Minas Gerais, 2001. 484 p. (Princípios do tratamento biológico de águas residuais, v. 6).
2Após ser submetido a processos de tratamento e beneficiamento, atendendo aos critérios microbiológicos e químicos estabelecidos na Resolução CONAMA 498/2020, o lodo passa a ser denominado de biossólido, material apto a ser aplicado em solos.
3Avaliação econômica do potencial de uso de lodo de esgoto em solos após higienização via estabilização alcalina. Disponível em: <https://cretes.com.br/biblioteca/avaliacao-economica-do-potencial-de-uso-de-lodo-de-esgoto-em-solos-apos-higienizacao-via-estabilizacao-alcalin/>