O esgoto que chega em nossas ETEs
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Autores: Carlos Chernicharo e Lívia Lobato
A caracterização do esgoto é fundamental ao desenvolvimento dos projetos e à operação e manutenção das diferentes unidades que integram o sistema de esgotamento sanitário (SES). É bastante comum que os projetos das unidades de coleta e transporte do esgoto (p. ex.: redes coletoras, interceptores, emissários e estações elevatórias) sejam baseados quase que exclusivamente nas características quantitativas do esgoto – vazões, com pouca atenção dispensada aos aspectos qualitativos.
Nesse blog, abordaremos um pouco as características quantitativas e qualitativas que podem impactar a operação e a manutenção de todas as unidades do SES, incluindo as estações de tratamento de esgoto (ETEs), sob a ótica de uma visão integrada do SES.
As características quantitativas do esgoto podem impactar substancialmente a operação do SES e mais particularmente das ETEs, uma vez que tanto vazões muito baixas quanto vazões muito elevadas, diferentes das previstas no projeto, são detrimentais ao adequado funcionamento das unidades do sistema, notadamente daquelas que são dimensionadas com base em parâmetros hidráulicos (p. ex.: velocidades, taxas de aplicação superficial etc.).
Vazões abaixo das previstas nos projetos podem propiciar a sedimentação excessiva de sólidos no sistema de coleta e nos canais do tratamento preliminar.
Vazões acima das previstas nos projetos podem acarretar extravasamento nos poços de visita e na chegada da ETE, além de sobrecarga hidráulica e prejuízo ao tratamento de esgoto, como a redução do tempo de detenção hidráulica e eventual arraste de sólidos junto ao efluente. Os episódios de extravasamento usualmente resultam no lançamento de esgoto (em conjunto com as águas pluviais) sem tratamento nos cursos d’água.
Também as características qualitativas do esgoto podem ser altamente prejudiciais ao correto funcionamento de todo o SES, podendo-se citar a presença excessiva de água de chuva, de detergentes (surfactantes), de óleos e graxas, de fármacos e, também, de detritos diversos (p. ex.: cabelo, cotonete, absorvente, fio dental, algodão, lenço umedecido, ponta de cigarro, materiais plásticos), os quais não deveriam ser lançados nas peças sanitárias em nossas casas.
Mas quais são os impactos nas partes constituintes dos SES, e principalmente nas ETEs?
Detritos de forma geral: obstruções de tubulações, avarias em equipamentos eletromecânicos e impactos na distribuição de vazão e eficiência de remoção nas unidades de tratamento.
Detritos de maior densidade: deposição no fundo das unidades, passando a fazer parte do lodo. A agregação de detritos ao lodo pode resultar na diminuição do volume útil das unidades e, quando removidos, podem causar entupimentos nas tubulações de lodo e prejudicar o funcionamento do sistema de desaguamento. Ademais, resultará na geração de um subproduto sólido (lodo desaguado) com qualidade estética desagradável, prejudicando a possibilidade de beneficiamento desse material para produção de biossólido para aplicação no solo.
Detritos de menor densidade: se não removidos de forma eficiente nas unidades de tratamento preliminar, irão flotar e, em conjunto com os óleos e graxas, potencializarão a maior formação de escuma. O acúmulo desse material no interior dos reatores anaeróbios pode levar ao bloqueio da passagem natural do biogás, prejudicando sua recuperação para fins de queima e/ou aproveitamento energético. Ademais, a camada de escuma pode resultar também na passagem de biogás para o compartimento de decantação desses reatores, comprometendo a retenção de sólidos e levando à deterioração da qualidade do efluente, bem como impactando diretamente no aumento dos níveis de emissão de gases odorante e de efeito estufa.
Areia: pode acarretar obstrução em tubulações, abrasão em equipamentos eletromecânicos, dificuldade para o transporte do líquido, principalmente em relação a transferência de lodo, em suas diversas fases. Ainda, juntamente com os detritos de maiores dimensões, irá se depositar no fundo das unidades e passará a fazer parte do lodo, acarretando diminuição do volume útil das unidades.
Materiais graxos, notadamente o óleo de cozinha: os impactos negativos podem ocorrer já no ponto de geração (p. ex.: entupimento de ralos de pias, tubulações e caixas de gordura), se estendendo por todo o sistema de coleta e transporte (p. ex.: redução da seção de escoamento de tubulações da rede coletora, formação de camada de material flotante nos poços de sucção de estações elevatórias e na própria ETE. Nesta, sérios problemas operacionais e de manutenção podem ocorrer em função da formação de crostas de materiais flotantes (escuma) na superfície de diferentes unidades de tratamento (p. ex.: decantadores primários, lagoas anaeróbias e reatores UASB).
Surfactantes: são os principais componentes dos produtos de limpeza doméstica, como detergentes e sabões, como também de alguns produtos de cuidado pessoal. O impacto ambiental mais conhecido, devido à sua visibilidade, é a formação de espumas, tanto em ETEs como em corpos receptores.
Água pluvial: embora os projetos de sistemas de coleta de esgoto sejam precipuamente concebidos como separadores absolutos, é comum a presença de ligações clandestinas de águas pluviais na rede coletora de esgoto. Caso não extravasado, o excesso de vazão afluente, além de provocar sobrecarga hidráulica e prejuízos ao tratamento de esgoto, ocasiona a diluição do esgoto (redução da concentração e da carga de matéria orgânica) e, consequentemente, no caso de reatores anaeróbios, tem impacto significativo na redução da produção de biogás.
Uma abordagem integrada de todo o SES, incluindo as fontes geradoras de esgoto (residências e estabelecimentos comerciais), é essencial para o melhor entendimento das características e dos problemas associados ao esgoto sanitário, como pressuposto para se alcançar a melhoria operacional das unidades e o tratamento sustentável do esgoto. Não basta apenas investir na melhoria dos projetos e no aprimoramento da operação e manutenção do SES, se não houver o entendimento de que vários dos atuais problemas operacionais têm origem:
- Nas fontes geradoras, em decorrência da inadequada utilização das instalações sanitárias nas residências e nos estabelecimentos comerciais.
- Nas próprias unidades de coleta e transporte, que por vezes veiculam esgoto com características quantitativas e qualitativas incompatíveis com as previstas no projeto da ETE.
Em síntese, os problemas associados às fontes geradoras e ao próprio sistema de coleta e transporte podem resultar na alteração significativa das características quantitativas e qualitativas dos esgotos que chegam às ETES.
Para além da melhoria dos projetos e do aprimoramento da operação e manutenção das ETEs, é importante também investir na conscientização dos usuários dos SES, por meio da produção e disseminação de conhecimento técnico, de modo a possibilitar o empoderamento e a sensibilização dos mesmos sobre a temática, em particular sobre a geração do esgoto, e sobre como cada usuário é diretamente responsável pelo sistema de esgotamento sanitário na sua origem – as residências e os estabelecimentos comerciais.
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