Economia circular: reúso de água não potável em estações de tratamento de esgoto traz sustentabilidade e gera economia
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Autores: Lívia Lobato e Lucas Chamhum
Os sistemas de esgotamento sanitário são fundamentais para a garantia da saúde pública, qualidade ambiental e, consequentemente, de padrões de vida minimamente adequados. Entretanto, o acesso a condições adequadas de esgotamento sanitário ainda é um grande desafio no Brasil. Segundo o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, apenas 55% da população brasileira é atendida com coleta de esgoto, e 43% é atendida por coleta e tratamento de esgoto, os dados são de 20201. Diante desse cenário, nota-se um desafio em duas direções complementares:
- A implementação de novas estações de tratamento de esgoto (ETE) onde não há tratamento.
- A gestão de forma apropriada e sustentável das estações existentes e das que vierem a ser implementadas.
Nesse contexto, com a perspectiva da ampliação necessária da cobertura de coleta e tratamento de esgoto, aumenta-se a geração de subprodutos, os quais podem variar em função dos processos de tratamento, mas, via de regra, podem ser sintetizados em efluente tratado (fase líquida), lodo de esgoto (fase sólida) e biogás (fase gasosa).
Nesse post do nosso blog, focaremos na fase líquida, mais especificamente, nas possibilidades de uso do efluente tratado, mas em breve divulgaremos conteúdos relacionados ao lodo e ao biogás. Por isso, nos acompanhe para continuar sabendo sobre o tema.
A atual lógica de projeto das ETEs é centrada no tratamento da fase líquida e do lançamento do efluente tratado em um corpo d’água. Entretanto, por meio da perspectiva da economia circular, o uso do efluente tratado, ou seja, a produção de água para reúso pode se desdobrar em diversas possibilidades, como uso na própria ETE (p. ex., limpeza de unidades), em atividades urbanas e industriais (p. ex., supressão de poeira, lavagem de veículos e logradouros, combate a incêndio, arrefecimento de instalações) e fertirrigação2 (p. ex., cultivos agrícolas, pastagens e silvicultura).
Observa-se, assim, que o efluente tratado é uma alternativa sustentável e complementar da matriz hídrica, a partir do seu potencial uso em uma ampla gama de atividades. Esta fonte alternativa possui apelo ainda maior em cenários de escassez hídrica, em especial nas situações de conflito pelo uso de água – situação em que a água disponível é insuficiente para suprir as demandas em determinada área de uma bacia hidrográfica. Por mais que o reúso aqui apresentado não contemple o consumo humano (reúso não potável), o fato de se reusar a água em atividades que não requerem qualidade elevada reduz a pressão sobre os recursos hídricos, auxiliando na minimização de problemas de racionalização.
Importante ressaltar que o acesso restrito à água, particularmente em regiões menos desenvolvidas, como o Semiárido brasileiro (que engloba estados da região Nordeste, além do norte do estado de Minas Gerais), pode dificultar o desenvolvimento socioeconômico. Nesse sentido, a adoção da prática de reúso da água pode servir de impulsão para a produção de alimentos tanto para consumo próprio como para comercialização, gerando movimentação econômica.
Em síntese, o reúso de água é um passo importante e necessário na gestão dos recursos hídricos, podendo gerar diversos benefícios sociais, ambientais e econômicos.
A finalidade do reúso determina o nível mínimo de qualidade de água, o qual deve ser comparado com a qualidade oferecida pela tecnologia de tratamento adotada na ETE. Para garantir a qualidade exigida, precisam ser definidos padrões, critérios e diretrizes, que devem estar alinhados com um documento regulador, que por sua vez deve estar alinhado com uma política de reúso de água. Independentemente do nível administrativo (municipal, estadual ou federal), o documento regulador deve levar em consideração os objetivos e as características locais, deve ter a intenção de permitir, orientar e incentivar a prática de reúso de forma segura e responsável.
O uso agrícola do efluente de ETE (efluente tratado) tem se mostrado uma importante forma de recuperação de recursos, a saber: água e nutrientes. A recuperação da água ocorre a partir do momento em que parte da necessidade hídrica das plantas é suprida por meio do reúso. Quanto aos nutrientes, uma vez que a grande maioria das ETEs brasileiras possui tratamento até o nível secundário, o efluente destas ETEs contém nitrogênio, fósforo, potássio e outros micronutrientes, os quais são disponibilizados às plantas via fertirrigação.
Além do uso agrícola, as diferentes formas de uso urbano apresentam uma tendência de alta demanda no país, fazendo com que maior atenção deve ser dada a essas possibilidades, com o objetivo de se reduzir as pressões sobre os recursos hídricos.
Embora todos os benefícios da prática, apenas 1,5% do reúso de água no Brasil é proveniente de efluente tratado.3
Ressalta-se que, atualmente, há conhecimento técnico para controlar os riscos sanitários e ambientais associados ao reúso. No entanto, apesar dos benefícios e do grande potencial de aplicação nas ETEs brasileiras, há uma série de critérios e cuidados a serem observados, e estes dependem de cada situação.
E o arcabouço legal para regulamentação da prática de reúso de água?
No contexto brasileiro, existem leis em todos os níveis federativos, bem como manuais criados por iniciativas de órgãos públicos e privados, que objetivam incentivar e/ou orientar o reúso de água não potável.
Atualmente, o quadro jurídico, em nível federal, para a implementação do reúso direto não potável de água é estabelecido pelo Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH), por meio da Resolução no 54/2005, que estabelece modalidades, diretrizes e critérios gerais para a prática, porém remetendo para regulamentação complementar os padrões de qualidade e os códigos de boas práticas para as diversas modalidades de reúso. Em 2022, esta resolução entrou em processo de revisão, abordando, entre outras questões, os referidos padrões de qualidade. A minuta da resolução em revisão esteve disponível para consulta pública até o dia 08 de novembro e gerou bastante discussão no meio técnico-científico. Consulte nossa contribuição em nosso canal do LinkedIn.
No âmbito dos estados, a regulamentação do reúso ainda é incompleta, porém cabe destacar os casos de legislações específicas, a exemplo de São Paulo, Ceará, Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul. A propósito, a equipe do CR ETES, o Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam) e a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) trabalharam em conjunto na elaboração da normativa que versa sobre o reúso direto de água não potável proveniente de ETE de sistemas públicos e privados no estado – Deliberação Normativa do Conselho Estadual de Recursos Hídricos (CERH-MG) no 65/2020.
A determinação de um quadro regulatório adequado, bem como a implantação de uma política de reúso de água são ações fundamentais para o incentivo e a institucionalização segura e responsável da prática de reúso como forma de aumentar a disponibilidade hídrica de uma determinada região. A regulamentação deve se apoiar em diferentes instrumentos como:
- A abordagem das tipologias de reúso alinhadas aos padrões compatíveis com as tecnologias de tratamento de esgoto de amplo domínio da engenharia e da capacidade de pagamento dos usuários, respeitando as diferentes realidades no território nacional.
- Indicação de padrões de qualidade de água para os diferentes usos baseada em ferramentas de avaliação de risco.
- Definição de responsabilidades entre os produtores e consumidores da água para reúso, além do papel do órgão fiscalizador.
- Mecanismos para o processo de licenciamento ambiental.
- Definição e orientação para implantação de metodologia de gestão de risco.
Para saber mais sobre os diversos tipos de reúso, potenciais e cuidados, acesse a Coletânea de Notas Técnicas “Reúso não potável de água” em nossa biblioteca.
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Notas:
1Percentual estimado com base nos indicadores IN056 e IN016 do Sistema Nacional de Informações sobre o Saneamento.
2Fertirrigação: prática de fertilização do solo com utilização de água para reúso, cuja dose aplicada promova o atendimento das necessidades nutricionais de espécies vegetais, sem, entretanto, comprometer a qualidade do solo e das águas subterrâneas e o desenvolvimento das plantas.
3Reúso de água para o desenvolvimento sustentável: Aspectos de regulamentação no Brasil e em Portugal. Disponível em: <https://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/70764/1/3206-gesta_jvieira_2020-1.pdf>