Biogás: uma fonte de energia limpa e renovável
9 min de leitura
Autores: Lívia Lobato e Lucas Vassalle
O tratamento de esgoto é essencial para proteger a saúde pública e o meio ambiente, mas também pode ser uma importante fonte de geração de energia limpa e renovável, por meio do biogás. Este subproduto gasoso, gerado em processos de tratamento anaeróbio (na ausência de oxigênio), possui elevado poder calorífico, sendo passível de recuperação e aproveitamento energético. Ao entender como funciona o tratamento de esgoto, podemos ajudar o meio ambiente e criar fontes de energia mais sustentáveis. Vamos juntos nessa empreitada?
Como é produzido e gerenciado o biogás nas estações de tratamento de esgoto do Brasil?
Como forma de simplificação do processo, pode-se dizer que o biogás é produto da digestão anaeróbia da matéria orgânica presente no esgoto. No Brasil, esse processo ocorre principalmente nos reatores anaeróbios de fluxo ascendente e manta de lodo (reatores UASB), nos quais, inicialmente, um grupo de bactérias hidrolisam substratos complexos em substratos mais simples e dissolvidos. A partir deste substrato simplificado, outros grupos de bactérias agem no processo e como produto geram, acetato, hidrogênio, dióxido de carbono, nitrogênio, monóxido de carbono, sulfeto de hidrogênio, oxigênio e metano.
Então, qual é a composição do biogás produzido a partir do tratamento de esgoto?
O biogás é composto por uma mistura de gases, tendo como principal constituinte o metano (CH4). Sua produção e composição é variável de acordo com o tipo e teor de matéria orgânica do substrato, entre outros aspectos, das condições físico-químicas na unidade de tratamento (pH, alcalinidade, temperatura), dentre outros aspectos.
Ah, o biogás também é gerado a partir de outros substratos, como resíduos da pecuária; resíduos da agroindústria e indústria alimentícia; fração orgânica de resíduos sólidos urbanos (FORSU)… Mas, nesse blog, nosso foco será o biogás produzido a partir do tratamento de esgoto. Ok?
E qual é o seu potencial energético?
Como observado, o biogás é composto majoritariamente por CH4 que, por possuir um elevado poder calorífico (superior ao do gás natural), torna passível a recuperação e aproveitamento energético do biogás.
O poder calorífico inferior (PCI) do biogás, com 70% de CH4 corresponde a 91,5% do PCI típico do gás natural.
Contudo, o CH4 também é um importante gás de efeito estufa (GEE), apresentando um potencial de aquecimento global, no horizonte de 100 anos, 28 vezes maior quando comparado ao CO2.
Nesse sentido, em vista do necessário incremento do tratamento de esgoto no Brasil, um novo desafio que se coloca é o entendimento e controle das emissões atmosféricas decorrentes dos sistemas de esgotamento sanitário, particularmente das ETE. As preocupações se justificam pelos efeitos locais, a começar pelos maus odores (relacionados principalmente ao H2S) e efeitos globais, decorrentes da majoração do efeito estufa (CH4). Por isso, a recuperação energética e a destruição do CH4 presente no biogás têm sido incentivadas, também como parte integrante de um plano de redução das emissões de GEE.
O potencial de geração de energia a partir do biogás, visto o enorme parque de reatores anaeróbios existentes no Brasil, ainda é subaproveitado e tem muito a avançar. Atualmente, a maioria das ETEs que utilizam reatores anaeróbios adotam queimadores abertos para o gerenciamento do biogás, de forma a minimizar as emissões de CH4 e H2S para a atmosfera, mas desperdiçando seu potencial energético. Entretanto, em grande parte das estações, durante o processo de queima dos gases não há um efetivo controle na combustão nem no confinamento do biogás, o que gera emissões fugitivas e altamente poluentes. Observa-se que, apesar de comum, a simples queima do biogás é contra a sustentabilidade do processo, já que descarta um produto com alto valor agregado.
Nesse sentido, os caminhos de recuperação e conversão do biogás em energia devem ser priorizados. Mas realmente isso é possível? Quais as rotas de aproveitamento do biogás nas ETEs?
Rotas de recuperação e conversão do biogás dentro de uma estação de tratamento de esgoto
Em relação à recuperação de biogás, as principais técnicas de conversão de energia estão resumidas na Figura abaixo.
Basicamente, existem dois principais caminhos que podem ser utilizados: a queima direta para recuperação de calor e a conversão em eletricidade e calor através de equipamentos de cogeração:
- A primeira situação é indicada principalmente para ETEs de pequeno e médio porte (até 100.000 habitantes). Neste caso, o biogás pode ser convertido em energia térmica que pode ser utilizada para cozinhar alimentos, iluminação, refrigeração de alimentos, aquecimento de água e para geração de calor em caldeiras, fornos e estufas. Outra possibilidade é a utilização da energia térmica recuperada do biogás para a higienização do lodo em leitos de secagem aquecidos visando a remoção de patógenos.
- O segundo cenário é indicado principalmente para ETEs de grande porte (acima de 100.000 habitantes). Neste caso, utiliza-se motores à equipamentos de cogeração de energia elétrica e térmica. A eletricidade produzida a partir do biogás pode permitir uma redução nos custos de energia da própria estação de tratamento. Além disso, o calor produzido no processo de cogeração pode ser utilizado para desaguamento e higienização do lodo, reduzindo seu volume e o transformando em biossólido para uso agrícola ou recuperação de áreas degradadas, o que permite economia nos custos com o gerenciamento, transporte e disposição final de uma grande monta deste subproduto. Além disso, esta prática reduz a emissão de gases de efeito estufa ao evitar a emissão de biogás para a atmosfera e as emissões dos veículos responsáveis pelo transporte do lodo para disposição em aterros sanitários.
A opção mais avançada para a conversão do biogás em energia é a sua transformação em biometano. Neste caso, a purificação e remoção do CO2 ou a conversão de CO2 em CH4 são necessárias para atingir valores aceitáveis de CH4 (superiores a 90%) para injeção na linha de gás natural e para o uso como combustível em motores de automóveis. No entanto, esta opção é dificultada devido ao nível e custo de tratamento bem mais elevados e à alta concentração de nitrogênio presente no biogás dos reatores UASB.
As diferentes rotas de aproveitamento energético do biogás apresentadas nesse blog podem contribuir com a diversificação da matriz energética brasileira, ainda que em pequena escala, podendo agregar benefícios financeiros, ambientais e sociais importantes para os setores produtivos do país, respaldando a construção de uma economia circular e de baixo carbono.
Na teoria tudo isso é muito interessante, mas, e a prática? Existe alguma ação em escala plena para o aproveitamento de biogás em ETEs? Quais os desafios para que ainda não seja uma prática recorrente?
Ações concretas de aproveitamento de biogás em ETEs no Brasil e os desafios futuros do setor
Como comentamos anteriormente, ainda são poucas as ETEs no Brasil que recuperam e aproveitam o biogás para geração de energia, mas a seguir apresentamos dois exemplos com rotas diferentes de utilização.
Em Montes Claros – Minas Gerais, a ETE Vieira, com capacidade para tratar o equivalente populacional (EP) de 270.000 habitantes, e cujo fluxograma de tratamento compreende reatores UASB seguidos de filtros biológicos percoladores, possui um secador térmico de lodo que utiliza o biogás gerado como combustível.
A ETE Ouro Verde (35.000 EP), localizada em Foz do Iguaçu – Paraná, foi uma das primeiras usinas de reatores UASB no Brasil a utilizar biogás, e a primeira a receber uma licença para injetar eletricidade na rede pública de acordo com as normas brasileiras da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) vigentes à época (nº 482/2012 e nº 687/2015*). O biogás produzido é coletado, e após o tratamento para remoção de H2S, é armazenado em gasômetro para posterior utilização como combustível em um motor de combustão interna.
Ressalta-se que a rota de recuperação e utilização do biogás a ser adotada deve ser avaliada caso a caso, considerando os aspectos financeiros, sociais e ambientais, bem como as características locais.
Importante mencionar ainda que o gerenciamento do biogás em ETEs com reatores anaeróbios ainda é um desafio no Brasil. Problemas de odores, corrosão, riscos ocupacionais, perdas energéticas, e até mesmo relacionados a efeito estufa, ainda são uma realidade. Nesse sentido, o controle das emissões gasosas em ETEs, muitas vezes negligenciado, passa a ser um importante aspecto de forma a minimizar os problemas citados.
A avaliação da viabilidade e a efetividade das rotas de recuperação e aproveitamento energético do biogás também passam por diferentes aspectos, tais como:
- Estimativa confiável da sua produção e composição.
- Adequada gestão e controle das emissões fugitivas (p. ex.: vazamentos nas linhas de gás; CH4 e H2S dissolvidos no efluente), que reduzem a produção e o potencial de recuperação do biogás, podendo inviabilizar os investimentos para o seu aproveitamento.
- Eficiência dos processos de condicionamento e tratamento, de forma a reduzir e/ou eliminar compostos indesejáveis, garantindo a qualidade do biogás de acordo com a utilização pretendida. Tecnologias de tratamento caras e com complexidade operacional podem impor limitações ao aproveitamento energético do biogás nas ETEs. Dessa forma, o conhecimento e a consolidação de tecnologias nacionais simplificadas e/ou de baixo custo para o tratamento do biogás se tornam essenciais para incentivar o aproveitamento desse subproduto.
Adicionalmente a esses aspectos, visando fomentar a prática de aproveitamento energético do biogás gerado em processos de tratamento de esgoto, é de suma importância o desenvolvimento de modelos de negócios associados à projetos de autoconsumo ou geração compartilhada de energia, considerando diferentes realidades e potencialidades.
*A geração de energia em centrais de micro e minigeração distribuída, bem como as regras do Sistema de Compensação de Energia Elétrica são regidas pela Resolução Normativas nº 1.059, de 07 de fevereiro de 2023, da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), e se aplicam a diversas fontes de produção, inclusive o biogás.
Para saber mais sobre aspectos associados à geração e características do biogás produzido a partir do tratamento de esgoto, formas de tratamento, gerenciamento e alternativas de aproveitamento energético, acesse a coletânea de notas técnicas “Valoração e gerenciamento de subprodutos gasosos do tratamento de esgoto” em nossa biblioteca.
Convidamos também para conversar com nossos especialistas sobre aspectos associados à produção e gerenciamento do biogás em ETEs.
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